Artigo

Medos

Nestes dias decidi ganhar coragem e contar-te o que nunca ouviste de mim e assim ficares a saber por completo toda a minha história, acabando com todas, mas mesmo todas as omissões entre as inúmeras hesitações, vírgulas que para ti eram incompreensíveis, todos os medos com letra grande que doem por não tos ter contado e que se acumularam – tudo por não saber o que irias achar de mim depois de te contar o que aconteceu no passado.

Não foi fácil construir este texto porque:

Primeiro: não me chames maluco depois de saberes tudo o que aconteceu. Foi esta a razão que fez com que não te contasse. Sou inteligente, sempre tive grandes notas, sempre tiveram inveja do meu sucesso na escola, mas o que aconteceu comigo vai contra essa inteligência, e fez afundar-me psicologicamente.

Segundo: não queria nada que estas coisas tivessem acontecido, se fosse hoje não teria saído nesse dia, nem conhecido essas pessoas.

Terceiro: sou fraco comigo próprio como vais entender, e talvez, por todas estas razões vais ficar com uma má imagem de mim. Não queria porque, entretanto, já curei estas feridas do passado sozinho. Isto cura-se dia após dia, ao entender que não tem sentido e com coisas positivas.

No fim deste texto poderás entender aquela mensagem que sempre disseste: “parece que vais e vens” e vais entender que nada tem haver com coisas estúpidas como traições, coisas completamente estúpidas relacionadas com as tuas amigas que nunca conheci nem as vi na frente. Se desconfias disso de mim estás enganada, se há coisa que sou é fiel ao meu espaço e aos valores, desde o que aconteceu, que te vou contar de seguida, nunca mais saí de casa, e já lá vão mais de seis anos.

Tudo aconteceu há cerca de seis anos, no meu segundo ano de Universidade, um ano antes de te conhecer. Já vai há muito tempo, mas há coisas que dão cabo de nós próprios.

Na altura tinha um amigo, que não entrou na Universidade mas que era o único que saia à noite e me levava com ele, vinha várias vezes à minha casa e os meus pais conheciam os pais dele. Nunca fui de ter amigos porque as turmas onde andava tinham já os seus grupos e havia muita rivalidade. Mesmo este amigo pertencia ao grupo que no secundário me lixou e que me andaram a perseguir, a apostar dinheiro entre eles para ver se me baixavam as notas tentando desencaminhar, obrigando-me a fazer coisas para “me interiorizar no grupo”.

Eu só queria ter amigos nessa altura, falar, conviver, não me sentir sozinho ou solitário e aquele grupo era o único que poderia em certa parte que não sentisse isso. Vais-me dizer que não deveria fazer essas coisas que me obrigaram e que levaram a tudo isto, mas com a confusão que estava a minha vida achava normal, eles diziam que estudar não era tudo na vida e que se tinha de viver experiências.

Cheguei a fumar nesse grupo, eles tinham amigos estranhos, convidaram-me para uma festa de anos e fui, mas quando saí quase entrei em coma alcoólico, foi o meu pai lá buscar-me e ele ainda hoje recorda essa situação e fica com medo quando saio de casa. Só bebi uma vez na vida e foi essa. Desde então o cheio de bebidas alcoólicas faz-me sentir enjoado.

Eles tinham amigos que se encontravam em garagens dos prédios, fui uma vez com eles, mas esses ambientes são completamente estranhos, cheiros esquisitos oriundos do que fumavam, conversas estranhas, alguns compunham músicas hip-hop e faziam duelos nesse ambiente. Gosto de compor músicas e de tocar guitarra, mas não nesses ambientes.

Vi de longe que este ambiente não era para mim, mas estava com o meu colega e saía de casa... pensava que ter amigos era isso.

Saiamos todos no meu carro velhinho de 5 lugares, no Opel Corsa, e íamos dar voltas por aí, uma vez ainda me recordo que dentro do carro estavam 10 pessoas pois no fim dava boleia àquelas pessoas todas até casa...

Íamos no meu carro às festas de Verão, nas localidades fora da cidade, detestava isso porque os meus pais não sabiam e depois porque era sempre eu a conduzir. Uma vez tiveram a ilustre ideia de querer que andasse a 20km/h na nacional, na hora em que toda a gente ia para a festa da localidade, a fila fazia quilómetros e só se riam com este tipo de atitudes parvas.

Outra vez, como infantis que eram andaram a por cadeiras velhas no meio da nacional, e escondiam-se a ver os carros a travar... Não alinhava nestas coisas, ficava no carro, o problema foi que alguém chamou a polícia e depois tiveram que se identificar e a maior parte deles eram menores de idade...

Eles marcavam encontros, na linguagem deles "dates" e eu como de costume de "velinha". Nunca alinhei nessas coisas, gozavam comigo, mas não faço parte desse estilo de vida, detesto aventuras, detesto magoar-me com momentos.

No fundo sentia-me a mais, mas eles levavam-me com eles e eu queria sentir-me integrado e não sentir solidão por estar em casa encerrado.

Para teres ideia um dia esse amigo meu andou a encantar uma rapariga num bar à beira da Universidade e por volta da meia-noite andei de chofer a deixá-los em casa visto que os pais dele tinham ido de férias. Isso não é vida, detesto pessoas assim, mas respeito cada um como é. Ele gabava-se destas coisas, todos diziam que ele era o maior... Uns dias depois ele confessa-me que a rapariga pensava e queria que eu estivesse lá e não ele porque achava-o infantil, eu ri-me, e disse-lhe apenas para crescer... Nunca me meti nesses jogos porque acho que as pessoas não devem ser usadas em momentos, isso é brincar com os sentimentos dos outros e até connosco próprios.

O ambiente que vivi nessas saídas por um lado fez-me ver que o mundo fora de portas é filho da "mãe", e fez-me ver que a solidão ou como lhe chamo “o meu cantinho” pode ser por vezes desesperante, mas é preferível a estas porcarias que se vivem lá fora.

Até agora apenas se contei algumas das coisas que aconteceram nessas saídas. A história que me marca começou numa dessas saídas.

Um dia, depois de o meu “amigo” se encontrar com dois amigos dele, um deles com o mesmo nome que o meu e que andava ainda no secundário na turma dele (o meu colega tinha reprovado várias vezes no secundário e decidiu mudar para o curso de letras em vez do de ciências, daí ele lidar com miúdos menores de idade ainda nessa altura), e outro que penso também não ter ainda dezoito anos mas intitulado o mais chunga do bairro e que tinha carro “chuning” para as corridas (era assim como era conhecido), decidiram entrar numa aventura. Decidiram andar a visitar casas assombradas e abandonadas. Eu sou um bocado sensível a estas coisas, e tudo começou aqui. Decidiram primeiro ir a uma casa à beira do Mac da Universidade onde nós os dois andámos, eu ainda me esquivei disso e não cheguei a entrar, fiquei no carro. Mal saíram dessa quiseram ir a outro sítio que eles conheciam... Quiseram entrar numa quinta que em certos tempos tinha ardido e que muita gente dizia ser assombrada por causa dos barulhos que se sentem, de pertencer a uma família desmembrada e que foi à ruína, onde houveram mortes, tendo acontecido lá coisas super estranhas. Sei que isto parece coisas dos filmes de polícia, mas a verdade é que é, e que me traumatizou mesmo. Nunca disse isto a ninguém, é a primeira vez que desabafo, e ainda agora ao escrever sinto sensação esquisita de arrepios e de lembranças disto que me fazem ficar cheio de comichão pelo corpo.

A quinta, por coincidência das coincidências fica mesmo perto a uns terrenos que a minha mãe herdou do meu avô, fora da cidade de Braga. Depois como não quer a coisa, perguntei coisas à minha avó sobre a quinta e ela confirmou estes rumores que descrevi em cima.

Não queria dar parte fraca para não me sentir estúpido no meio deles e acabamos por subir um muro enorme de seis metros. Lá dentro aconteceram coisas estranhas, como morcegos que se aproximavam e faziam barulho na vegetação, uma capela desfeita, vidros partidos e coisas a partir ao longe, cortes de animais desfeitas, e coisas que não quero contar para não transmitir mais medo. O cheiro a madeira podre, de estar tudo fechado, até os meus colegas ficaram traumatizados com o que se passou lá dentro mas eles superaram, eu não.

Fugimos pelos terrenos que davam para o quintal, da quinta, eu quase desmaiava de tanto correr e estar nervoso, só me apetecia vomitar na altura, lembro-me perfeitamente.

Encontramos mezinhas e porcarias que não sei o que era, fugíamos ainda mais, até que decidiram todos ir embora e na saída magoei-me a subir o muro ao contrário porque era preciso pendurar-se numa janela intermédia de grades e eu sou fraco e não conseguia subir, tiveram de me ajudar.

Desde esse momento que saímos fiquei traumatizado e sempre que me recordo de essa situação apetece-me esquecer e sair dali.

Quando alguma coisa acontece na minha vida e vem esse pensamento tento desligar-me de tudo para não associar e ficar afetado.

Quando começamos a falar e te disse olá, esse pensamento veio e o meu inconsciente associou à nossa conversa esses sentimentos estranhos. Sempre que naquela altura falávamos vinha esse pensamento e eu queria apenas não responder para não pensar na situação. Gostava de ti na altura, não foi nada que me fizeste que fez com que deixasse de te responder. Apenas chorava de aflição e tristeza. Agora compreendes a minha revolta sempre que digo que perdi-te por causa de medos?

Por vezes quando trabalho acontece isto e tenho a mania de apagar o que escrevo nessa linha e recomeçar de novo. É estúpido, vais-me dizer. Agora já não acontece isto, mas na altura que nos conhecemos passava às vezes uma hora a acabar uma frase, por isto acontecer.

Por vezes tinha que repetir todo o trabalho por exemplo na reparação de um equipamento, voltar a formatar o computador porque associava aqueles pensamentos maus ao equipamento, e sempre que o ligava lembrava-me do que passei como se tivesse preso novamente naquele sítio. Tinha que reformatar tudo novamente por exemplo, uma, duas, três vezes às vezes.

Por vezes tinha que abrir a mesma música antes de a ouvir duas ou três vezes, até que o pensamento desaparecesse, senão não a conseguia ouvir mais. Ficava nervoso, a suar, como se estivesse lá dentro outra vez.

O truque era associar o pensamento a um sítio bom como se estivesse lá, era a alternativa psicológica que tinha para ficar melhor. Refugiar-me nos momentos do por-do-sol que vivi no Verão, ou em sítios normais do quotidiano.

Quando comprava alguma coisa, ficava a suar porque ao tocar pela primeira vez tinha de associar a um sítio positivo, senão andava traumatizado por uns tempos.

Vais achar-me maluco, eu sei, mas sou super sensível a estas coisas e se te acontecesse isto não sei como agirias, o meu cérebro viveu uma sensação de experiência extrema de negação do que estava a fazer, e associou a uma trauma, e fez-me passar por estas coisas.

Na primária disseram-me que era superdotado, fui analisado na altura por psicólogas da escola e queriam-me passar para o segundo ano logo. O meu cérebro anda a mil sempre, sinto isso em mim, é estranho, é uma força enorme que por vezes até é incompreensível, consigo prever dezenas de casos de exceção em poucos segundos. Não sei se isso está na base do desenvolvimento deste trauma porque o inconsciente foi levado ao extremo nessa experiência e desenvolveu qualquer rede neuronal ou parte relacional do cérebro.

Só sei que acho que estraguei a minha vida por ter saído com aqueles gajos.

Quando me afundo em tristezas isto não ajuda... Daí eu "parecer que vou e venho"...

Sempre tive medo de contar isto porque: primeiro nunca o fiz, nunca desabafei, nunca expressei a ninguém o que vai dentro de mim por medo da reação dos outros e depois porque eu próprio não conseguia, gaguejava e só queria sair de onde estava quando tentava expressar. Foi o que aconteceu quando estivemos juntos no ano passado e me perguntaste se havia mais alguma coisa. Mesmo agora sinto o corpo cheio de comichão meia fria, que me recorda esses maus tempos. Desculpa, mas isto não é nada mas mesmo nada fácil...

Não há pessoas perfeitas e eu tenho este problema. Na altura não conseguia expressar isto com medo, preferia fugir e reter-me no meu mundo.

Pensa o que achares de mim, desculpa se te fiz sofrer por estes motivos. Agora sei que estou de consciência tranquila por desabafar tudo em mim, e que se um dia leres este texto não restam mais segredos nenhuns.

Nunca tive ninguém na minha vida, nem antes nem depois de te conhecer. Prefiro estar sozinho. Só sei que no meio disto tudo um sentimento nasceu em mim e com o tempo quis recuperá-lo, o amor.

Agora sabes toda a minha história, sem reticências ou vírgulas... Desculpa por não ter coragem de ta contar antes...

30 DEZ, 2018 0

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